Criadas com o objetivo de oferecer novas alternativas de captação de recursos para os bancos que financiam o setor imobiliário, as Letras de Crédito Imobiliário (LCIs) viraram uma febre no mercado graças à isenção tributária dos rendimentos dos investidores. Agora que o estoque desses papéis no sistema financeiro já alcança algumas dezenas de bilhões de reais, começam a aparecer casos de papéis emitidos sem lastro em créditos imobiliários.
Ao menos um banco, o Sofisa, tem vendido a investidores papéis que não têm por trás carteiras de crédito imobiliário ou outro tipo de financiamento para o setor. Segundo o próprio banco confirma, suas LCIs são baseadas em outras modalidades de operações de crédito, como capital de giro, que contam com imóveis em garantia.
A Lei 10.931 de 2004, que autoriza a emissão desses títulos, prevê que as LCIs devem ser lastreadas por "créditos imobiliários garantidos por hipoteca ou por alienação fiduciária de coisa imóvel". Essas operações podem ter como referência carteiras de crédito para pessoas físicas ou jurídicas, essas últimas voltadas para o financiamento de construtoras ou projetos imobiliários. O emissor dos títulos pode ser um banco múltiplo, uma sociedade de crédito imobiliário, uma companhia hipotecária ou qualquer outro tipo de instituição, desde que autorizada pelo Banco Central.
O Sofisa não tem operações de crédito imobiliário e, de acordo com informações disponíveis em seu site na internet, suas LCIs têm como lastro imóveis que foram dados em garantia de operação de financiamento. "A oferta de LCIs pelo Banco Sofisa Direto está condicionada à existência de lastro, ou seja, de operações cujas garantias sejam imóveis", destaca o banco em sua página.
Em entrevista concedida ao Valor em 16 de julho, Bazili Swioklo, diretor do Banco Sofisa Direto, afirmou: "o lastro das nossas LCIs é o imóvel dado em garantia nos empréstimos que concedemos para nosso clientes". O banco opera principalmente com empresas de médio porte. A finalidade dos créditos concedidos é diversa. Há operações para capital de giro e para aquisição de equipamentos, por exemplo, segundo informa o próprio banco. Essas operações não têm as características das linhas de financiamento imobiliário, tanto em prazo como em risco.
O Sofisa vem ampliando a captação por meio desse instrumento. De acordo do último balanço publicado pela instituição, o estoque dos papéis emitidos somava R$ 76,392 milhões ao final do primeiro trimestre, com crescimento de 112,7% em relação ao registrado no final de 2011. O estoque representava 2,3% da captação total do banco, de R$ 3,287 bilhões.
Recentemente, o Sofisa investiu em uma campanha publicitária que contou com a participação do ator Dan Stulbach. No vídeo veiculado na TV aberta, o ator oferecia as LCIs do banco para investidores pessoa física e ressaltava o retorno até 20% superior à nova remuneração da poupança e a isenção do Imposto de Renda (IR) sobre o rendimento.
Praticamente todos os grandes bancos têm lançado mão desses instrumentos baseados na carteira de crédito imobiliário. Mesmo bancos médios como BVA, Pine e ABC, que não atuam diretamente com a linha de financiamento imobiliário, têm emitido esses títulos com lastro na carteira de empréstimos a construtoras ou a projetos imobiliários, algo permitido pela legislação.
Por contarem com isenção de IR, esses papéis têm tido grande demanda, principalmente entre investidores de private banking. O estoque de LCIs registrado na Cetip cresceu 49% nos últimos 12 meses encerrados em junho, somando R$ 56, 727 bilhões. Mas nem todas as operações são registradas, algo que não é obrigatório.
A responsabilidade pela fiscalização é do Banco Central. Procurada, a autoridade monetária informou que não comentaria o tema. O Valor apurou, entretanto, que o entendimento do BC é que as LCIs devem ter como lastro créditos imobiliários.
A lei que autoriza a emissão de LCIs divide opiniões no mercado financeiro e entre advogados. Há quem entenda que é possível emitir LCI sem crédito imobiliário, como faz o Sofisa. "A legislação permite que transações para 'usos gerais', que contêm garantias imobiliárias, se enquadrem como lastro de carteira de LCIs", diz Arturo Profili, sócio-diretor responsável pela área de renda fixa e produtos estruturados da Capitânia Asset.
Para Alexandre Tadeu Navarro, do escritório Navarro Advogados, a lei "não permite a emissão da LCI com lastro em crédito de outras naturezas, mesmo que a garantia seja imobiliária." A emissão sem lastro em crédito imobiliário também é vista com reserva por Carlos Ferrari, sócio do escritório de advocacia o N, F&BC. "A simples garantia de um imóvel não teria poder para modificar a natureza da operação."
O advogado destaca que, se a operação não estiver de acordo com a legislação, a instituição financeira pode ser autuada pela Receita Federal por não ter recolhido o IR nas emissões de LCIs. O investidor também pode ser cobrado por ter auferido um rendimento acima do que era devido e pode ter que pagar a diferença na declaração de ajuste do IR. No caso de um desenquadramento, Ferrari também afirma que o investidor pode ter dificuldade para receber o pagamento do Funda Garantidor de Créditos em uma eventual liquidação financeira da instituição emissora.
Assim como nos CDBs, o risco de crédito do papel é o da instituição financeira emissora.
O apetite das instituições pela LCI é facilmente compreendido. A captação a partir da letra imobiliária custa muito menos para o banco do que, por exemplo, o CDB. Como a LCI é isenta de IR para a pessoa física, o banco pode prometer um retorno bruto menor. Uma simulação no site do Sofisa Direto mostra essa vantagem para o banco e para o investidor. A LCI de seis meses paga 93% do CDI. O CDB de seis meses, 103%. Quem aplicar R$ 10.000 na letra imobiliária recebe, no final do período, R$ 10.351. No CDB, recebe R$ 10.311, 57. Atualmente, ao emitir uma LCI, um banco médio paga entre 85% e 95% do CDI. Ao emitir um CDB, um banco médio paga ao investidor entre 95% e 112% do CDI.
No Banco BVA, o estoque desses títulos soma R$ 800 milhões e representa 15% da captação total da instituição. O lastro das operações são financiamentos a projetos imobiliários, que somam hoje uma carteira de R$ 1,6 bilhão. "O mais importante é que o tomador desse crédito seja do setor imobiliário", afirma Ivo Lodo, presidente do BVA. Lodo destaca que a remuneração paga pelo banco em uma LCI, de até 108%, chega a ser de três a cinco pontos básicos inferior à de um Certificado de Depósito Bancário (CDB) emitido pela instituição. O prazo médio das operações é de seis meses, e todas as emissões de LCIs e seus lastros são registrados pelo banco na Cetip.
Já no Pine, o estoque de LCIs alcançava R$ 19 milhões em julho, menos de 1% da captação total do banco. As emissões têm como lastro o financiamento a empresas do setor de construção civil, que hoje representam 9% da carteira de crédito total do banco.
O Banco ABC Brasil também esclareceu que as LCIs emitidas pelo banco são lastreadas em empréstimos a incorporadoras e construtoras, que são direcionados para aquisição e investimentos em imóveis. O estoque de títulos emitidos pelo banco somou R$ 169,745 milhões no segundo trimestre, o que representa 1,4% da captação total.
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